Introdução: O Mito da Persona Perfeita

Imagine a cena: uma sala de reuniões com uma lousa branca coberta de post-its. A equipe de marketing, cheia de energia, está dando os toques finais em seu mais novo cliente ideal: “Ana, 32 anos, profissional urbana que adora ioga, café artesanal e acompanha as últimas tendências no Instagram”. Ela tem um nome, um rosto de banco de imagens e um conjunto de características meticulosamente selecionadas para representar o público-alvo perfeito.

Essa prática, a criação de personas, tornou-se o padrão ouro do marketing moderno. É ensinada em cursos, celebrada em conferências e aplicada religiosamente em agências e empresas ao redor do mundo. É a base sobre a qual se constroem campanhas, produtos e estratégias inteiras.

Mas e se essa abordagem, tão amplamente aceita, estiver fundamentalmente equivocada? Pior ainda, e se ela estiver, sem que percebamos, perpetuando vieses que limitam nosso alcance e distorcem nossa visão do mercado?

As pesquisas de marketing mais recentes estão revelando uma realidade desconfortável: muitas das “verdades” sobre as quais construímos nossas estratégias estão desmoronando. Este artigo explora cinco revelações surpreendentes que desafiam a sabedoria convencional e forçam uma reavaliação completa de como entendemos nossos clientes.

Primeira Revelação: Segmentação de Mercado Não é o Que Você Pensa

A primeira grande rachadura na fundação do marketing moderno está em um erro de tradução conceitual que já dura quase 70 anos. Criamos uma “falsa equivalência” entre segmentar o mercado e segmentar clientes, tratando-os como se fossem a mesma coisa. Mas eles não são.

Quando Wendell Smith introduziu o conceito de segmentação de mercado em 1956, seu foco não era em classificar grupos de pessoas. Seu objetivo era distinguir mercados — ou seja, identificar curvas de demanda divergentes que exigiam estratégias e ofertas de produtos únicas.

Uma análise de seu artigo seminal revela que ele usou o termo “mercado” 64 vezes, em comparação com apenas cinco menções a “consumidor” e uma única menção a “cliente”. Em essência, Smith estava segmentando o que as pessoas querem comprar em uma determinada situação, e não quem são as pessoas.

Por que essa distinção é crucial?

Ao focar obsessivamente em categorizar pessoas (“Ana, a amante de ioga”), os profissionais de marketing podem perder oportunidades estratégicas em mercados totalmente distintos que coexistem. Por exemplo, o mercado de chocolate de luxo para presente e o mercado de chocolate como um lanche rápido para recarregar as energias são fundamentalmente diferentes, mesmo que a mesma pessoa participe de ambos.

“[P]redominantemente, focamos na segmentação de clientes, não na segmentação de mercado. Embora esses dois conceitos pareçam semelhantes, eles não são… o primeiro [segmentação de mercado] lida com o mercado geral e o último com a base de clientes específica e atual.”

Segunda Revelação: Sua Persona “Baseada em Dados” Provavelmente é Tendenciosa

A defesa comum para o uso de personas é que elas são “baseadas em dados”, mas isso oferece uma falsa sensação de segurança. Mesmo com dados, nossos vieses se infiltram no processo, criando perfis que confirmam nossas suposições em vez de desafiá-las.

Um estudo de Handayani e colegas (2025) sobre a criação de personas em uma universidade revelou um problema comum: os perfis de pesquisa frequentemente pendem fortemente para um mercado específico, compondo a maior parte das respostas e, consequentemente, introduzindo um viés significativo nos resultados desde o início.

Se sua pesquisa sobre consumidores de tecnologia é respondida majoritariamente por jovens de centros urbanos, sua persona “baseada em dados” irá inevitavelmente ignorar uma vasta gama de outros potenciais clientes.

O Perigo dos Outliers

Além disso, conforme observado por Reed e seus colegas (2025), ao basear personas em cargos, demografia e setores, corremos o risco de excluir ou discriminar sistematicamente os outliers (pontos fora da curva). Essa prática acaba perpetuando vieses nas estratégias de comunicação.

Em contraste, abordagens modernas, como a clusterização de dados com algoritmos K-Means, oferecem alternativas mais objetivas para identificar grupos de usuários com base em comportamentos reais, em vez de suposições demográficas falhas.

O perigo da abordagem tradicional é real: as empresas podem estar alienando ativamente clientes em potencial e baseando estratégias inteiras em uma visão distorcida e incompleta do seu verdadeiro mercado.

Terceira Revelação: O Mesmo Cliente Pode Pertencer a Múltiplos Segmentos

Um dos critérios sagrados da segmentação tradicional é a “exaustividade”, a regra de que um cliente deve pertencer a apenas um segmento. Se Ana é do segmento “saudável e consciente”, ela não pode estar no segmento “indulgente e impulsivo”. Mas a realidade do comportamento humano é muito mais fluida e complexa.

A pesquisa mostra que o mesmo consumidor pode se envolver em diferentes práticas de consumo e, portanto, transitar entre vários segmentos, mesmo ao comprar o mesmo produto. Por exemplo, a mesma pessoa pode comprar vegetais orgânicos em uma segunda-feira por uma motivação de sustentabilidade, e na sexta-feira comprar os mesmos vegetais por uma motivação de hedonismo, para preparar um jantar especial.

A Fluidez da Identidade do Consumidor

A principal lição aqui é revolucionária: o que impulsiona o comportamento do consumidor não é uma identidade fixa, mas sim o contexto e a motivação do momento. As pessoas não são perfis estáticos; elas são atores dinâmicos que se movem entre diferentes “mercados” dependendo da situação.

Se a identidade de um consumidor é fluida e dependente do contexto, então focar na pessoa é a abordagem completamente errada. A verdadeira oportunidade não está em traçar o perfil do indivíduo, mas em entender toda a situação em que ele age.

Quarta Revelação: Não é Apenas Quem Compra, mas Toda a Situação

Se as personas demográficas são falhas, qual é a alternativa? A resposta está em mudar o foco de quem compra para a situação em que a compra ocorre. O conceito emergente é a “persona sociotécnica”, que não é um perfil de pessoa, mas sim um “assemblage” — uma combinação de elementos que, juntos, criam um mercado.

Os 4 Componentes do Assemblage Sociotécnico

Um assemblage sociotécnico, conforme detalhado por Syrjälä et al. (2025), é composto por quatro componentes principais:

  • 👥 Pessoas: Quem está envolvido? (Ex: amigos compartilhando chocolate)
  • 🏠 Espaços: Onde a ação acontece? (Ex: em casa, em um café)
  • 📱 Dispositivos: Quais objetos ou tecnologias estão presentes? (Ex: tomar vinho com o chocolate, assistir a um filme)
  • 🎯 Agendas: Qual é o objetivo ou a motivação? (Ex: relaxar, celebrar, recarregar as energias)

Exemplo Prático: Chocolate em Contextos Diferentes

Vamos usar o exemplo do consumo de chocolate. A mesma pessoa pode participar de dois assemblages completamente diferentes:

🍫 “Indulgent time persona” é um mercado definido por:

  • Uma pessoa sozinha em casa (espaço)
  • Assistindo TV (dispositivo)
  • Com o objetivo de relaxar após um dia difícil (agenda)

🎉 “Social luxury persona” é um mercado definido por:

  • Amigos em um café (espaço)
  • Celebrando uma conquista (agenda)
  • Com um bolo de chocolate e café (dispositivos)

Essa abordagem é mais poderosa porque permite que os profissionais de marketing se dirijam a situações de consumo recorrentes, que são muito mais preditivas do que perfis de personalidade estáticos.

Quinta Revelação: Sua Inteligência Artificial Está Aprendendo Seus Vieses Pessoais

A tecnologia, especialmente a IA Generativa, é frequentemente vista como a solução para os vieses humanos. No entanto, ela pode, na verdade, estar amplificando-os. O viés na IA não vem apenas dos dados com os quais é treinada ou da programação; ele também vem da forma como os usuários interagem com ela — o prompting.

O Perigo Sutil do Prompting

Um profissional de marketing entrevistado em um estudo recente sobre IA observou como a ferramenta se adapta a ele:

“Eu converso com o ChatGPT diariamente, agora ele entende minha preferência e meu trabalho atual… às vezes funciona mais rápido que meu próprio cérebro.”

Aqui reside o perigo sutil. Cada vez que um profissional de marketing usa uma ferramenta de IA, ele está, sem perceber, “treinando o modelo em algo”. Ele está codificando seus próprios vieses culturais, suas suposições não examinadas e suas visões de mundo na produção da IA.

Se um profissional de marketing tem uma imagem mental de que “executivos de tecnologia são homens”, seus prompts para gerar imagens ou textos sobre esse público provavelmente refletirão e reforçarão esse viés, que a IA aprenderá e replicará.

Conclusão: De Perfis Estáticos a Contextos Dinâmicos

As cinco revelações pintam um quadro claro: o marketing está passando por uma mudança de paradigma fundamental. A era de focar em quem são nossos clientes está dando lugar a uma era focada em entender as situações em que eles compram. A segmentação baseada em demografia estática está se mostrando não apenas imprecisa, mas também potencialmente prejudicial.

A Nova Autoridade da Marca

A verdadeira autoridade da marca e a estratégia eficaz no cenário moderno não vêm de encaixar pessoas em caixas, mas de entregar valor dentro de contextos de consumo dinâmicos. Como aponta a pesquisa de Donner (2025), a autoridade digital é construída por meio de interações autênticas, conteúdo relevante e relacionamentos de longo prazo com o público-alvo.

A segmentação de mercado, em seu sentido original, está sendo redescoberta: não se trata de classificar pessoas, mas de identificar e servir a esses momentos e situações recorrentes.

A Pergunta que Importa

Isso nos leva a uma reflexão final. Em vez de perguntar “quem é nosso cliente ideal?”, talvez a pergunta mais poderosa que os profissionais de marketing possam fazer hoje seja:

“Quais situações de consumo criam um mercado para nós?”


Este artigo foi baseado em pesquisas recentes de marketing e na experiência prática da Agência Integrare em projetos de segmentação estratégica. Para uma análise personalizada do seu mercado e situações de consumo, entre em contato conosco.

📚 Referências e Fontes:

  • Smith, W. (1956) - “Product Differentiation and Market Segmentation as Alternative Marketing Strategies”
  • Handayani et al. (2025) - “Persona Creation in University Research”
  • Reed et al. (2025) - “Demographic Bias in Persona Development”
  • Syrjälä et al. (2025) - “Sociotechnical Assemblage in Consumer Behavior”
  • Donner (2025) - “Digital Authority and Brand Strategy”

Perguntas Frequentes

Qual a diferença entre segmentação de mercado e segmentação de clientes?

Segmentação de mercado foca em identificar curvas de demanda divergentes e situações de consumo, enquanto segmentação de clientes classifica grupos de pessoas por demografia. Wendell Smith (1956) segmentava o que as pessoas querem comprar, não quem são as pessoas.

Por que personas 'baseadas em dados' podem ser tendenciosas?

Mesmo com dados, vieses se infiltram no processo. Se a pesquisa é respondida majoritariamente por um grupo específico (ex: jovens urbanos), a persona resultante ignora outros potenciais clientes, perpetuando vieses nas estratégias de comunicação.

O que é assemblage sociotécnico em marketing?

É uma combinação de quatro elementos: Pessoas (quem está envolvido), Espaços (onde acontece), Dispositivos (objetos/tecnologias presentes) e Agendas (objetivo/motivação). Foca na situação de consumo, não no perfil da pessoa.

Como a IA generativa pode amplificar vieses em marketing?

A IA aprende com os prompts dos usuários, codificando vieses culturais e suposições não examinadas. Cada interação 'treina o modelo' com os vieses pessoais do profissional de marketing, que a IA replica e amplifica.

Por que o mesmo cliente pode pertencer a múltiplos segmentos?

O comportamento humano é fluido e dependente do contexto. A mesma pessoa pode comprar o mesmo produto por motivações diferentes (sustentabilidade vs hedonismo) dependendo da situação, transiting entre segmentos.